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Os miúdos do fio de nylon (parte 1)

Agachados em cima de um caixote cambaleante, os dois irmãos magricelas vão unindo, com uma agulha e muita paciência, as palmilhas dos sapatos de camurça. Aprendem mais depressa a coser do que a decorar a tabuada. Eles trabalham há várias horas, com a família, num alpendre escuro, de granito frio e madeira carcomida e onde se misturam os cheiros fétidos do estrume e do bafio. As grossas dedeiras nem sempre os protegem do cortante fio de nylon, que lhes vai abrindo gretas e deixando cicatrizes nas palmas das mãos. Não é preciso ser vidente para lhes ler um futuro enegrecido... Pormenor: a cena não se passa num bairro da lata em Calcutá, ou numa província da China, mas a norte de Portugal, numa freguesia rural em Felgueiras!
"Ai, aleijei-me!", exclama Miguel, o mais velho, interrompendo o pesado silêncio. Veste uma "t-shirt" do campeão, o "fê-quê-pê", e sonha mostrar ao mundo os seus dotes com o esférico. Um dia. Por enquanto, são as suas mãos esguias que trabalham no duro e não os pés de artista. "Foi a agulha que me picou". Miguel nem precisa de explicar. A família reunida em torno da pilha de sapatos com carimbo Zara, desata à gargalhada. Jás estão habituados aos descuidos do miúdo de 14 anos. "Ele é quem tem menos jeito para isto. Saiu-me cá um preguiçoso", graceja a mãe, Aldina, cabelo eriçado, roupa desbotada, pele engelhada e mais envelhecida do que os trinta e poucos anos do bilhete de identidade. Na idade deles, também ela cosia sapatos, numa frábica em Felgueiras. Ela, a irmã, a cunhada, a prima, a avó...


in Única, Hugo Franco


Uma história que me impressionou no meu país. Quando todos estão preocupados em receber um pc do Socrates!!!!

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