Aquele Inverno ameaçava ser rigoroso. A safra da pesca, no mar, terminara. Os poucos pescadores que não tinham abalado para terras estranhas, à procura do pão, esperavam que as águas do rio aumentassem com as chuvas, para tentarem a pesca da enguia.
Fortes trovoadas traziam as primeiras águas barrentas, e, depois da isca preparada com fios de minhocas enroladas junto da chumbada, presas por um fio à ponta da cana, despreendidas das
amarras os pequenos barcos, todos se preparavam para a colheita, que prometia ser farta.

O Puxa e o Traga, latindo de satisfação, saltaram para as embracações dos donos.
Os barcos deslizaram pela ria acima até que, escolhido o sítio conveniente, os fixaram com varas, e os pescadores, tirando as canas, começaram a faina.
Mal a isca entrava na água, logo era puxada pelo peixe. A cana erguia-se a cada instante, atirando com as grossas enguias para o fundo do barco. Não havia memória de tanta abundância. Horas depois, no pequeno batel, avolumavam-se as enguias, que se entrelaçavam umas nas outras, em constante movimento, na lenta asfixia.
Não tinham contado com tanta sorte. Os cestos que traziam não chegavam para transportar tanto peixe. Era preciso ir a casa levar o que pudessem, comer uma bucha e voltarem rápidos para aproveitarem aquela maré única.
Enchidos os cestos, amarram os barcos e deixaram os cães de guarda aos batéis.
Anoitecia. No céu, grossas nuvens negras avolumavam-se ameaçadoras, em pronúncio de mais trovoada. Sós, nos barcos, a pouca distância um do outro, os cães estavam impacientes, latindo, na previsão de um próximo perigo.
Ao som do primeiro trovão enroscaram-se, rosnando, de olhos atentos. Logo a chuva começou a cair, em fortes bátegas, persistente, diluviana. A torrente do rio aumentava. O volume das águas subia. Os cães olharam-se de novo, a gemerem. Pressentiam que, com um tempo assim, os donos não meteriam pés a caminho.
As margens galgavam as margens do rio em luta com as ondas que a maré cheia empurrava do mar. Os animais, encharcados, uivavam lançando latidos de socorro. Sentiam a corrente puxar os barcos e fazê-los chocar contra a muralha. As amarras eram frágeis, as cordas estavam prestes a rebentar. Um tronco de pinheiro, descendo vertiginosamente, veio bater nos batéis, que se soltaram e seguiram à deriva naquele inferno caudaloso.
Quando os donos, através do temporal, chegavam a correr, receando desgraça, já não viram barcos nem cães, como se tivessem sido tragados pelo torvelinho fatal. Pela margem do rio, para baixo e para cima, chamaram, gritaram, assobiaram e... nada.
- Puxa! Puxa!
- Traga! Traga!
As vozes perdiam-se no rugir do temporal.
E o dia surgiu, claro, tão radioso que parecia querer disfarçar a tragédia da noite.
Por toda a parte era um estendal de desgraças. Os barcos tinham sido estilhaçados. Sobre as margens, aqui e acolá, bocados de tábuas entre árvores arrancadas pela raiz.
- Puxa! Puxa!
- Traga! Traga!
Os filhos dos donos dos cães tinham chegado ao romper da manhã e choravam. Não podiam aceitar a desgraça. Toda a aldeia tinha vindo presenciar os estragos daquela avalanche.
- Traga! Traga! Vem aqui! Sou eu, o teu dono.
- Puxa! Puxa! Não ouves? Sou eu. Vem cá!
Os apelos aflitivos e as lágrimas das crianças comoviam toda a gente.
Subindo sempre rio acima, pareceu-lhes de repente que de um pequeno ilhéu tinha vindo um latir gemebundo. Devia ser talvez imaginação. Mas logo alguém gritou: "Acolá! Acolá! Parece um cão. É um cão, com certeza." Um dos barcos meteu a vara mais a fundo e dirigiu-se ao pequeno ilhéu.
- Cá estão eles! Cá estão eles!- gritou o homem, saltando em terra.
Aproximou-se. Por entre lama escorregadia, entre tufos de junco e ervas, no mais alto do monte, o Traga e o Puxa estavam deitados, um junto do outro, com as patas dianteiras enlaçadas como num abraço.
José Loureiro Botas, Barco sem Âncora
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